Saindo do armário
Victória Kiomy é uma geminiana de 24 anos, jornalista e uma mulher lésbica que performa feminilidade. Questionada sobre seu processo de descoberta, ela conta que não foi fácil, principalmente porque era muito nova. “Eu fui arrancada do armário aos 14 anos pela minha mãe. A gente estava jantando e, um dia, ela me perguntou se eu gostava de mulher. Eu só tinha beijado uma que, inclusive, foi meu primeiro beijo. E, até os meus 19 anos, minha vida era um inferno em casa por conta disso. Ninguém sabia, exceto quem vivia comigo em casa. Comecei a ser proibida de sair, a ser castigada por coisas que não tinha feito. Era horrível”, explica.
Exausta da situação em casa, a jovem contou sobre sua sexualidade para seus tios e primos e eles a acolheram, sendo “minha rede de apoio, com meus tios e meus avós”.
“O fato de eu performar feminilidade foi um fator estressante nesse processo, porque as pessoas simplesmente não acreditam que você gosta de mulher. Isso me privou muito de explorar minhas experiências e explorar a minha sexualidade. Por ser essa lésbica que usa saias, passa rímel e anda de salto alto, eu me privei de, por exemplo, beijar um amigo homem. Na minha cabeça, isso me faria menos lésbica, mesmo que seja uma ‘brincadeira comum’ entre amigos e amigas LGB. Com o tempo, fui tirando isso da minha cabeça e entendendo que como eu me expresso não me faz menos ‘sapatão’ que uma mulher que não performa feminilidade”, pontua.
Preconceitos e Violências
Infelizmente, a violência é um cenário comum que a comunidade LGBTQIA+ enfrenta todos os dias. Com base em sua experiência, Victória diz a falta de informação foi um ponto muito importante nas violências que sofreu como mulher lésbica. “Eu saí do armário novinha e a última coisa que meus pais vieram falar comigo foi sobre preconceito. Ninguém veio me orientar ou conversar comigo sobre as violências que eu poderia passar. O que eu aprendi, eu aprendi na rua”, disse. A moça conta que viveu, inclusive, uma violência policial aos 15 anos. “Eu estava de mãos dadas com a minha namorada e um policial nos parou e perguntou se a gente sabia que aquilo [estar de mãos dadas], era atentado ao pudor. E eu respondi que não, que não sabia, porque eu só estava de mãos dadas com a minha namorada. Ele começou a tremer e se exaltar, gritando. Sem muita noção respondi que não ia passar por aquilo, que não ia apanhar de um policial e simplesmente saí andando”, relembra rindo. “Hoje vejo a loucura que foi, mas na época acho que fiz o que deveria ter feito. Não levo ofensas para minha casa. Tento pensar que não ouvi e finjo que não é comigo. Eu acho que se minha integridade física está segura, eu não tenho que fazer nada a respeito”.
“Eu tive que passar por muita coisa estranha para entender como a sociedade heteronormativa me lia. Fez muita falta uma pessoa me dizer que eu ia passar por violências diferentes porque eu sou lida de uma outra forma e toda a sociedade espera uma postura minha. Porque hoje nós já temos referências lésbicas diversas, mas na época não era assim. Hoje a gente entra na Netflix e vê mulheres lésbicas de vários jeitos e, por mais que seja ficção, toda arte imita a vida”, completa.
Dentro da Comunidade
Dentro da comunidade LGBTQIA+, engana‑se quem acredita que o tratamento é acolhedor e inclusivo para todos os participantes e, sobre isso, Victória desabafa sobre as invalidações que já sofreu por ser uma mulher lésbica e performar feminilidade. “Eu senti, em diversos momentos, o sentimento de dúvida sobre a minha sexualidade vindo de outras ‘sapas’. Sabe aquele seu amigo hétero que fica duvidando que você gosta de algo e fica te questionando? Então, é a mesma energia. Já tive que ouvir coisas como ‘ah, mas você gosta mesmo de mulher?’ ou ‘quantas mulheres você já beijou?’. A comunidade é quem deveria acolher e apoiar, porque ela sabe como lidar com as diferenças, mas simplesmente escolhe não lidar.O pior é a invalidação, a repressão e crítica é aquela que vem de dentro”, explica.
“Muitas vezes, as meninas da comunidade caem nessa cilada de estereótipos heteronormativos. Coisas como ‘ah, para gostar de uma ‘mina’ precisa, minimamente, não performar feminilidade. Isso nos leva à estaca zero, né? Nós precisamos nos libertar desse espaço heteronormativo, de tentar achar papéis em casais que não têm papéis”, comenta.
Para Victória, o casal de duas mulheres que performam feminilidade é mais fetichizado que um casal onde uma não performa, embora a situação aconteça com casais sáficos em geral. “Aconteceu comigo uma vez, eu estava em uma festa, e uma ‘sapa’ que não performava tanto chegou e me disse “pode beijar minha namorada, eu acho lindo duas minas “femininas” se beijando. A gente não é convite, sabe? É invalidar esse casal e a forma como elas se gostam. Nós somos um casal sério. Isso não é diferente do que seu pai e sua mãe tiveram, sabe?”, acrescenta.
É importante salientar que, muitas mulheres, na falta de uma representação lésbica saudável, usam como referência de tratamento homens héteros e seus comportamentos machistas, o que é extremamente problemático e, infelizmente, comum.
Mercado de Trabalho
Questionada sobre mercado de trabalho, a jovem responde que reconhece o privilégio que tem, principalmente por poder decidir quando contará que é lésbica. “Por performar feminilidade, as minhas capacidades vêm antes da minha sexualidade, situação muito diferente de alguns irmãos e irmãs da comunidade. Às vezes, na cabeça do empregador, o fato da mulher não performar feminilidade é percebido antes da capacidade que ela tem para aquela vaga. As pessoas só vão saber que eu sou lésbica quando eu contar para elas. Eu trabalho com publicidade e, por sorte, é um setor bem diverso, então normalmente me sinto acolhida por eles. Eu ser sapatão não era uma pauta e isso era ótimo”, pontua.
Afetividade
Refletindo sobre as situações que passou nesses 10 anos desde quando se assumiu, Victória diz não acreditar que sua vida tomou o rumo que sonhou. “Hoje, com 24 anos, eu vivo uma situação que eu nunca sonhei de tão boa. Eu moro com a minha noiva e minha família nos lê como uma família qualquer. Só quem está dentro da comunidade entende o quão maravilhoso é isso; apresentar sua namorada para os seus pais, para os seus amigos sem medo, sabe? Ano passado, eu estava em um encontro na Biblioteca Infantil com minha namorada, que agora é minha noiva, e minha mãe virou para uma amiga dela e disse “essa é minha filha e essa é a namorada dela”. Quando eu ia sonhar que isso ia acontecer, sabe?”, suspira.
“Fui em um casamento com ela e peguei o buquê e minha mãe disse que era bobagem, porque eu já estava noiva. Isso dá aquele sentimento de ‘a gente chega lá’, né?. Eu acho que só cheguei nesse ponto porque eu não cedi, sustentei quem eu sou até o fim e tive uma rede de amigos maravilhosos que nunca me abandonaram. De verdade, me sinto bem abençoada por todo mundo que me rodeia e me ama. Eu também os amo”, conclui.
Postar um comentário